Vergilio, dez anos depois da morte
«A Verdade das coisas
Então lembro-me intensamente de Milinha, de quanto era ainda minha filha - vamos pelas ruas ao acaso, compro-lhe gelados, bombons, explico-lhe o mistério dos seres, levo a minha filha pela mão. E como nunca, sinto-me investido de grandeza, de uma justificação inteira de estar na vida - levo a minha filha pela mão. Meu Deus, se eu soubesse dizer, se eu soubesse recompor esta verdade tão simples, pela mão, esta verdade tão intensa. O calor do meu sangue, trespassa-nos pelas mãos dadas, sinto-o no quente da minha palma fechada, fluido misterioso, vertiginoso como um incêndio divino. Um ser aberto de inocência, indefeso e tão frágil, os olhos ávidos de saber, erguidos para mim - sou eu que sei coisas, acumulado do saber dos séculos, e eu to gravo no teu cérebro confiante, na virgindade do teu início. Poderoso da minha força erguido ao alto do meu arbítrio, da minha solicitude - tu à minha mercê, tanto. E uma ternura difícil no meu sorriso nublado. Aperto a minha mão na tua e o teu pulsar do coração minúsculo desfolham, passeamos num parque, talvez é o Outono do amadurecimento da vida. Senhor da vida eu que ta dei, a reconheço agora na mão que prendes à minha, na fortíssima vitalidade que por ela passa, silenciosos agora, graves, enquanto entregue à minha protecção, estudas de olhos abertos a verdade das coisas.»
Rápida, a sombra (1974)
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