12.1.06

A propósito de um recanto de Veneza

Burano, Veneza

PAVANA DAS PUTANAS DE COPACABANA

De uma esquina, de outra esquina,
do mar da noite, de uma noite e de outra noite,
do mar da noite desmergulham tantos, a blusa
subitamente roxa e a saia
subitamente azul:
nem chegadas nem partidas
no aparição das pávidas esquinas
aparecidas, desaparecidas
entre emboscada e dança
inefáveis infantas
se maceram
na pavana das putanas de Copacabana.

Esta de branco, esta de verde, esta de roxo, esta de azul,
esta de calças amarelas, esta de mãos negras, esta
de nuca loura, esta
de primavera no garganta o cigarro na boca e aquela
de tornozelo triste
e todas
na pavana das putanas de Copacabana.

Se conheço! Vinhas
pela beira do Alster, marinheira e hanseática:
"Wovon kommen Sie? Calcutta?" E descias o Rheno
entre o trigal e as águas e
de água e trigo
douravam-se e aromavam-se os cabelos;
lembras? a gôndola em frente à casa de Marco Polo,
e quem silenciara e quem evanescera a redondez
das ancas a ondular e sumir-se nessa esquina
de Düsseldorf?

De Koenigsallee a Koenigswinter tu,
outono da alcova e noite — de onde? —
musa do quarteirão — "je vous emmène?" — quem
de nós te levaria
em salva de mãos de prata dessa
pavana das putanas de Copacabana?

Enumerasse as cidades e as ruas
e ao nome delas
teu rosto respondera:
foi assim em Florença aquela noite quando
o lírio floresceu na pedra
quando
o lírio boiou nas águas do Arno e as Sabinas
de onda e lírio
raptavam os soldados e os turistas:

Elvira Lopes abrira
da feira de Crateús ao patamar da Igreja dos Teatinos
de Munich a dança
da pavana das putanas de Copacabana.

Bem que amais enumerar o inumerável:
como rompeis o sono dos catálogos
à veia das cidades:
"Frauen, mein Herr, Kaerntnerstrasse, die Graben, Viena";
Por que não sai o Rei Baudouin à Porta de Namur e o Rei dos

Céus à Porta Saint Denys,
quando a rosa dos ventos desabrocha nos olhos
e as que foram perdidas são achadas
e nos Champs Élysées, no Boulevard des Italiens e na Chaussée d'Ántins surgem do mapa, surgem
das partituras madrilenhas da Gran Via
ao ensaio
da pavana das putanas de Copacabana.

Por quatrocentas pesetas
a madrugada estremece
e na fontana romana
são atiradas de costas
as liras de seus poetas
e os corações das infantes:
já sem cor, apenas úmidos
do sangue e da aurora delas,
os lixeiros levam baldes
de corações sobejados;
e onde eles foram no peito
pregado um sete de copas
lembra as sete punhaladas
que uma vez assassinaram
na esquina de Belfort Roxo
a dançarina de rosa
da pavana das putanas de Copacabana.

Maria Clarice Lima
quis falar, não pôde mais:
numa golfada de sangue
caiu morta na calçada:
("a flor do cáctus desabrocha a medo
da noite tropical na mansa calma"):
sobre sandálias de ouro
a relva ondeia e cresce;
os automóveis, os bondes e as bundas enfunadas
das ondas da rua à tona
se entregam e se furtam nas esquinas:
sua ausência apalpada
aos moldes de sombra e luz
prometera repetir-se:
ó presença irreparável,
pantomima de gnomos na calçada
que empalidece e treme
à pavana das putanas de Copacabana.

Às vezes, de repente, não são mais;
seriam? E esse aroma no ar, fleur de rocaille
de onde vão se erguendo no elevador vazio do Hotel de Frankfurt
as mãos, os olhos, a sobrancelha fuliginosa
de Lore Lautz, de Maria Helena;

e do convés do Provence ao cais de Anvers e aos aires
de Buenos Aires
e em tanta madrugada,
e o céu de Deus e Aracaju e o silêncio
no arrabalde da lua de Heidelberg e de Ipueiras,
luaceiro de um pátio da Bahia,
enlanguesçam nas pedras do Recife,
surjam no Lido, surjam ou desapareçam,
em todas as esquinas
as esperadas inesperados dançam
a pavana das putanas de Copacabana.

Hoje, não estou a fim de homem:
a fim de uma pavana mariposa, a fim
de ao jogo de luz da lua
não negar no chão da noite
o jogo da sombra em dança:

Vamos fazer amor? Vamos fazer a rosa e a madrugada,
vamos fazer a lágrima e o soneto, vamos
fazer amor e morte?

Um pas-de-deux e uma "partouse" de anjos
na pavana das putanas de Copacabana?

E norte e sul e leste e oeste
ao sabor da rosa
sobre as rosas-dos-ventos da calçada
florescidos o bairro, a noite, a rua, florescido
o quinto andar daquele apartamento,

que ritos meneais agora em torno a um féretro,
a um tempo carpideiras e defuntas;
tantas vezes, quem sabe, taumaturgas,
desceríeis talvez ao cemitério ou dele
incorporadas e bruxoleantes
ireis chegando ao rosto verde dos vitrais,

bruxas de Orfeu,
enfeitiçadas feiticeiras, ninfas
e virgens e viúvas e mártires e noivas,
tu — fêmea do príncipe apunhalado, tu,
entre os postes da rua, entre os ciprestes,
quem sois vós que chamais
com flautas murmurantes
entre umbigo e musgo,
de onde sois, de onde não, pelas esquinas
na pavana das putanas de Copacabana.

"Je suis martiniquaise, mon chéri,
tu n’aimes pas les martiniquaises?
E às vezes chove tanto e de estrelas apenas
restaria a dos olhos: fora uma delas
dos céus da Martinica,
iríamos os três — Lafcádio Hearn, Lafcádio de Baraglioul e este
vosso cantor
à roda de egipans, pelo bosque das dríades,
iríamos os três pela calçada, bêbados,
cantando a letra antiga: esta foi açafata, esta foi baronesa;
o grande Pá não morre, morto é Tamos no Egeu, esta foi açafata,
esta foi minha prima, esta foi minha noiva, esta foi abadessa
quando os sonhos eram, quando
não descobrira a noite
da pavana das putanas de Copacabana.

Na matriz da praça a voz do monsenhor:
"dies irae, dies illa, solvet saeclum in favilla, teste David
cum Sibilla";
que levareis então? Este
uma torre de petróleo, este uma torre
de catedral:
e se eu chegasse desse olhar, uma noite em São Paulo,
embarcado dessa esquina, a bordo da madrugada,
passageiro dessa
pavana das putanas de Copacabana?

Para que me chamais? Por vós, por mim? Por quatrocentos pesetas?
Pelo metro do tempo que se parte e se perde o se ganha;
de uma de vós, de qual, de quantas,
eu soube um dia
virilha e seio
e bem que lembro ao sopro das narinas
a relva tremer no púbise o coração no peito:
e quem soubera se sou eu que vos busco
ou vós que me buscais:
quem outrora sabia das estrelas
se buscavam no mar os marinheiros ou eles
as buscavam no céu:
por isto a noite dói,
como doeu a noite, como doía o mar na noite aquela
do encontro de Odisseu: quem clamara mais alto — o vosso
apelo, ou
a saudade de vós em que o guerreiro
fugia à sua guerra e à sua paz?
Pois não doía em vós a voz dos marinheiros?
Quem convida, quem dança? Danço eu ou dança Elvira nessa
pavana das putanas de Copacabana?

Testemunhas da noite e das estrelas
testemunhas de mim
talvez de um gesto desabroche um nome
e no paralelogramo
das sombras na calçada se repita a letra
hebraica que traçaram uns dedos sobre a areia:
que de areia e de pedra ao vento e à lua
possam e duram
as pavanas dessas
putanas de Copacabana.


[de Gerardo Mello Mourão]