6.12.05

Um leite-creme, um bombom, um pastel de Belém e um gelado para sempre

Por norma, estes eram os dias mais emotivos da vida de Chico Panzé. E os mais activos do ano. Em quatro dias consecutivos marcavam-se na agenda de Chico Panzé as três datas mais importantes da sua história.

Dia 5 de Dezembro era o dia em que a sua falecida bisavó faria anos. Amália de sua graça e de seu fado, a velhota há muito tinha deixado de queimar o melhor leite-creme que Chico Panzé alguma vez tinha provado. Há mais de 10 anos que a 'Vó 'Mália tinha saído da sua vida e, no entanto, não havia ano em que Chico Panzé não chorasse a perda da velhota. Todos os anos, todos os dias 5 de Dezembro, lá ia Chico Panzé aos Prazeres depor a sua rosa. Deixado o beijo na pedra e a saudade na lápide, seguia para a Tasca do Ferragial comer um leite-creme. Que ano a ano, lhe sabia cada vez menos ao leite-creme que guardava na memória.

Dia 6 era, de todos o mais efusivo. Afinal, era o dia em que Chico Panzé e Maria Alva tinham começado a namorar, já há 16 anos. Maria Alva tinha sido a sua única namorada. E, apesar de já estarem separados há oito anos, Chico Panzé sentia que ainda lhe devia a sua fidelidade e o seu amor. Claro que o marido e pai dos dois filhos de Maria Alva não achava grande piada mas, todos os anos, no dia 6 de Dezembro, Chico Panzé enviava a Maria Alva um ramo de rosas. Todos os anos, as mesmas oito rosas, um cartão e uma caixa de bombons. E um telefonema. E todos os anos, que romântico, a mesma resposta do outro lado: "não me ligues mais, Chico, por favor, não me ligues mais". Mas ele sabia que Maria Alva só dizia aquilo por dizer... Ela adorava aqueles bombons.

O dia 7 de Dezembro era o dia de anos do seu velho e caro avô. O filho de Amália não era, na verdade o seu avô - era apenas o padrasto da sua mãe. Mas ainda assim, era o único avô quye conhecera. E só por uma questão de sangue é que não era o patriarca da família. Parecia injusto, mas era essa injustiça que os aproximava um do outro. A injustiça e o culto pelos velhos filmes do Humphrey Bogart. E o Belenenses. E todos os dias 6 de Dezembro, Chico Panzé levava o seu avô à Cinemateca e, depois, a jantar. Inevitavelmente, a discreta celebração acabava com um café e um Pastel de Belém.

Finalmente, o dia 8. O dia em que Chico Panzé partilhava a dor com milhares de outros pelo mundo inteiro. Era o dia da morte de John Lennon, o seu maior ídolo. O seu único ídolo. E todos os anos, no dia 8, Chico Panzé saía à rua de barba por fazer e ia divagar pelo jardim da Gulbenkian. Durante horas, todos os anos, Chico Panzé fechava assim o ciclo mais emotivo do ano, os seus quatro dias mais intensos. Deitado na relva, de olhos nas nuvens, a murmurar "imagine all the people, living life in peace" e a comer um gelado de morangos-do-campo para sempre.

Depois... já não fazia parte desta história e, por isso, Chico Panzé não ligava, mas todos os anos, no dia 9 de Dezembro, a Jorginha ligava a Chico. Só para saber como ele estava e convidá-lo para um café e... Mas Chico Panzé nunca tinha aceitado. Nem nunca tinha somado dois mais dois... Isso seria bom demais. E para Chico Panzé, não havia dias assim.