21.7.05

Poema de Teodoro de Sá Coutinho

CARTA DE GUIA QUE UMA FREIRA MESTRA DEU A UMA CORISTA PRINCIPIANTE NO TEATRO AMOROSO

Filha, dentro do convento
Há duas castas de freiras:
Umas que o são verdadeiras,
Outras só por fingimento;

Umas frequentes no coro
E firmes na castidade;
Outras frequentes na grade
E contínuas no namoro.

Tu suponho que daquelas
Não queres entrar nas contas,
Pois hoje passam por tontas
As que são santas e belas:

Quanto mais que o ser beata
as loucuras maiores;
Pois quem sofre directores
Tem muito de mentecapta:

Por isso os teus bons intentos
De ter amores aprovo,
Porém, como entras de novo,
Precisas de documentos.

Na costura uma menina
Não se chega a fazer destra,
Se primeiro a douta mestra
Os pontos lhe não ensina;

Se primeiro não concorda
Pelo risco a breve agulha,
Rude a mão, o fio embrulha
E sem graça a olanda borda.

Assim corista entendida
Sucede a quem sem receio
Se mete no galanteio
Sem ser primeiro instruída.

Antes de entrar no projecto
Da amante correspondência,
Consulta a conveniência,
Depois consulta o afecto.

Ama, pois que a natureza
Ou to ensina, ou to permite;
Mas primeiro do apetite
Te lisonjeie a riqueza.

Filha, sem dinheiro agora
Não se faz nada no mundo;
Tudo com ele é fecundo,
Tanto dentro como fora.

Faz a feia linda e bela,
A que é vil faz ser senhora,
Faz santa a que é pecadora,
E faz discreta a singela.

Tem pois de amor na baralha
Hoje um trunfo verdadeiro,
A que saca mais dinheiro,
Ou coisa ao menos que o valha.

Mas também deve a prudência
As mais acções governar-te;
Que o saber amar é arte.
E o saber viver ciência.

PRIMEIRA LIÇÃO

Primeiramente te asseia;
Pois no amante galanteio
Faz muitas vezes o asseio
Parecer bela a que é feia.

A arte no alinho ensina
Perfeições à natureza,
Pois com o asseio a beleza
Passa a ser coisa divina:

Mas sabiamente reparte
Dos adornos a destreza!
Pareça só natureza
O que for cuidado d'arte.

O vestir próprio convenha
Do teu estado à doutrina:
A estamenha seja fina,
Mas seja sempre estamenha.

Se a camisa for de preço,
Ou de ordinária despesa,
Seja limpa, que a limpeza
Nunca pode ser excesso.

Seja bordado o sapato;
A meia de seda seja;
Será bom que amor a veja
Mas que a rebuce o recato.

Ajuste bem no semblante
Branca a touca e transparente,
Mas sempre seja decente
Sem deixar de ser galante.

O espartilho algum defeito
Sem muito aperto desminta,
Faça mais estreita a cinta
Faça mais crescido o peito.

Deixa ver parte do seio,
Que abri-lo todo é loucura;
Pois passa a descompostura
Sem chegar a ser asseio.

Andem das vistas distantes
Os peitos modestamente;
Pois, se os mostras à mais gente,
Que hás-de mostrar aos amantes?

Enfim, seja sempre o rosto,
Bem ou mal delineado,
Naturalmente engraçado,
Mas com destreza composto.

Se da face a cor primeira
For desmaiada ou remissa,
Embora seja postiça,
Mas pareça verdadeira.

Em falar bem sempre estuda,
Sem ter nas palavras míngua;
A que não dá bem à língua
Era melhor nascer muda.

Sejam as vozes suaves
As expressões carinhosas,
Para os amantes mimosas,
E para a mais gente graves.

Da língua emenda os defeitos
Sem ter de discreta a sécia,
Que às vezes passa a ser nécia
A que fala por conceitos.

Nas cartas cuida em ser breve,
Natural, clara e sucinta,
Mas primeiro o peito sinta
O que a mão depois escreve.

Deixa as palavras subidas
Para pompados sermões,
Porque as tuas expressões
Basta que sejam polidas.

Não só deves estudar
No falar, e no escrever,
Mas em saber-te mover,
Em saber rir e chorar,

Qualquer acção que se move
Com graça e ar nos recreia;
Um sorriso nos enleia,
Um suspiro nos comove.

Destas, e de mil miudezas
Que o uso ensina somente,
Faz amor continuamente
O triunfo das belezas.

SEGUNDA LIÇÃO

Com esta lição primeira
Se segue a eleição do amante,
E ponto o mais importante
Que pode ter uma freira.

O fidalgo muitas vezes
Entra por este convento,
Sem outro merecimento
Que os seus Teles e Meneses:

Louva a seus avós honrados,
Celebra os seus ascendentes;
Mas, se não mandar presentes,
Zomba-lhe dos seus passados:

Se se apeia no terreiro
Com cavalos e criados,
Sabe que uns são emprestados,
Outros filhos de um caseiro:

Se te manda é tão-somente
Uma canastra de fruta;
E não sejas dissoluta
Por tão pequeno presente.

Mas se algum for liberal
E já senhor de morgados,
Emprega nele os cuidados
Conforme o seu cabedal.

Traze-o sempre seguro
E no mandar tão frequente,
Que até chegue, de imprudente,
A tomar dinheiro a juro.

Do clérigo, e mais do frade
É maior a sementeira,
Porque neles o ter freira
Não lhe ultraja a gravidade:

Pois eles têm por ciência
De achar, não sei por que conta,
No trato de fora, afronta,
E, no das freiras, decência.

Mas seja clérigo ou frade,
O teu favor só dispensa
Ao que tiver melhor tença,
Ou mais rica dignidade.

Mas dos Franciscanos nossos
Foge, e toma os meus conselhos;
Pois são zelosos em velhos
E são vadios em moços.

Nenhum deles que dar tem,
Que é o ponto principal;
Mas, se for provincial,
Podes-lhe então querer bem.

Também alguns estudantes
Frequentam a portaria,
E neles se principia
O concurso dos amantes;

Mas só servem para aquelas
Que penteiam desenganos,
E que já, pelos seus anos,
Vão deixando de ser belas.

Uma questão na verdade
Só definir-te não posso:
Se há-de ser o amante moço,
Se já crescido na idade.

No primeiro o fogo activo
Arde, brilha e resplandece;
No segundo se esmorece,
Mas sempre mais afectivo:

Arde o moço mais violento
Mas com chama mais segura,
Arde o velho, e mais lhe dura
O fogo quanto mais lento:

Um se muda facilmente,
Outro é firme até à morte;
Se ama o primeiro mais forte,
O segundo mais prudente.

Todos os enamorados
Querem passar por discretos;
Mas muitos por circunspectos
Se fazem alambicados:

Foge destes, se quiseres
Crer-me a mim por experiência,
Que é preciso outra ciência
Para agradar às mulheres.

TERCEIRA LIÇÃO

Resta-me agora explicar-te
A frase, o modo e maneira
Com que, na grade primeira,
Deves, menina, portar-te.

Em os primeiros favores
Mostra-te sempre remissa,
Que com isso mais se atiça
O fogo nos amadores.

O mais que podes fazer
É mostrar-lhe o teu sapato,
Mas com tal pejo e recato,
Que o faças enlouquecer:

Se bem que há tolinha agora
Que logo ao primeiro rogo
Tem o mesmo desafogo
Que tem qualquer pecadora.

Isto, filha, danifica
Das freiras a gravidade;
Pois tanta facilidade
Vergonhoso nome indica.

Inda que mostre direito
Para renovar instâncias,
Finge vergonhosas ânsias
Com melindroso trejeito.

Vira a cara, torce a vista
Por mais que agradá-lo queiras;
Pois o repúdio das freiras
Novos afectos conquista.

Faze na segunda grade
Com que... Mas aqui chegava
A mestra quando a chamava
Para o locutório um frade.

«Adeus», lhe disse, «que vou
Falar com este asneirão;
Não te esqueça esta lição,
Que experiências me custou.

O mais que quero dizer-te
Ficará para outro dia;
E do meu cuidado fia
Que cedo mestra hás-de ver-te.»