A crise começa por cima
Ler jornais neste país é um exercício de pura flagelação. Sobretudo o muito isento e sério tablóide da nação, que, com a Quinta das Celebridades e o telejornal dessa boneca do Contra-Informação chamado Manuela Moura Guedes, completa a santíssima trindade da fabricação da opinião pública.
Sem entrarmos pela falta de rigor jornalístico que é já apanágio do 24Horas (e que hoje chama a Campos e Cunha «o ministro que apertou o cinto aos portugueses», como se Ferreira Leite e Bagão Félix nem sequer tivessem existido) e pela descarada falta de revisão dos seus textos (o melhor exemplo do dia é quando chama a Teixeira dos Santos ex-presidente do conselho directivo da «Comissão de Mercados e Calores Mobiliários» - assim mesmo: «Calores Mobiliários»), o que me irritou hoje mais do que tudo foi o pequeno pormenor de, num espaço dedicado a dar notas (de 1 a 5) às caras das notícias, se escrever a seguinte barbaridade:
«Campos e Cunha: 1
Este ministro prometia muito. Falhou em tudo. E, já agora: o que é que ele ganhou em ser ministro das Finanças, para além de um óbvio rol de chatices?»
Nada a dizer quanto à opinião de quem deu a nota - opiniões são opiniões e são todas válidas enquanto opiniões, mesmo quando são, em si próprias, contraditórias, como é caso desta última ("falhou mas estamos solidários porque foi uma chatice", é isso?). Apenas um reparo: porque é que neste país ainda se põem as coisas nestes termos? Porque é que uma pessoa só há-de ir para a política ou para o governo se tiver algo a ganhar? Porque é que, neste país, ser político é um investimento e não uma missão?
Enquanto vivermos num país em que a política é um meio para chegar a outros fins, enquanto tivermos jornais a perguntar "o que é que X ou Y ganhou em ser ministro" ou ex-ministros a dizer aos jornais que "agora que sou cabeça de cartaz é que é bom" ou jornalistas a fazer das decisões políticas questões pessoais e políticos a fazer das opções pessoais questões políticas, enquanto as novelas e o futebol e as brigas de vizinhos venderem mais jornais e os jornais derem destaque às opiniões de fadistas sem credibilidade com a mania que são políticos sérios e estrelitas da TV que têm a mania que são mais importantes do que realmente são, a crise não acaba! Não estou a falar dessa crise que vem nos jornais - estou a falar de uma outra crise, mais enraízada, invisível, cultural, geracional, estou a falar da crise de valores, de seriedade, de perseverança, de prioridades, da crise de ser português. Essa é que é a crise que é preciso atacar. Essa é que é a crise...
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