15.7.05

3 meses, 12 dias e 21 horas (quase 22)

Há já três meses, doze dias e vinte e uma horas (quase vinte e duas) que Juíz Dissidente não espetava um tiro em alguém. Claro que o facto de estar desprovido de arma era factor decisivo, mas era sobretudo fruto da sua nova vida. Afinal, há quase-quase um ano que Juíz Dissidente não faltava a uma reunião dos Atiradores Anónimos, na cave da Igreja do bairro.

Ainda assim, todas as noites, Juíz Dissidente se lembrava da última vez em que tinha espetado um tiro numa pessoa. Foi num quiosque na rua de baixo, quando se preparava para pagar o jornal e o maço de tabaco da praxe. Por engano, em vez da carteira, tinha tirado do bolso um pequena arma semi-automática de canos serrados, modelo 351 de disparo múltiplo e bala fina de corte perfurante, daquelas que só os mercenários e os donos de lojas de conveniência usam. Apertar o gatilho foi um reflexo natural e inadvertido.

Dessa vez, Juíz Dissidente só soube largar a pistola e fugir, ao aperceber-se do que tinha feito. Correu que nem um cavalo de corrida na recta da meta, enquanto o quiosqueiro, sangrando de três enormes buracos no peito, esbracejava e mandava revistas na sua direcção e gritava "gatuno!".

Felizmente, na fuga, tinha conseguido guardar o jornal e os cigarros, que fumaria mais tarde, escondido por trás de um velho carvalho no jardim da avenida, enquanto pensava que, ao menos, nunca matou ninguém. Senão, teria que ir às reuniões dos Homicidas Homónimos - que reuniam todos os dias, mesmo aos fins-de-semanas, feriados e férias - em vez dos "Atiras" - que só reuniam três vezes por semana.

Mas isso já foi há três meses, doze dias e vinte e uma horas (quase vinte e duas). Hoje, Juíz Dissidente estava prestes a acabar com tudo isso. Depois de passar pela loja de armas ilegais no rossio da cidade, dirigia-se a passo largo para a cave da igreja, de mala cheia e vontade bem ferrada no olhar. Afinal, passavam três meses, doze dias e vinte e uma horas (quase vinte e duas) desde que tinha espetado um tiro no quiosqueiro, mas faltavam apenas duas horas e meia para que se passasse um ano desde que ía às reuniões dos Atiradores Anónimos. E se havia coisa que Juíz Dissidente não queria continuar a ser era anónimo...