26.2.05

Da Ignoração

Dezassete dos Santos era um homem simples, banal. Um homem discreto, quase secreto. Tinha casa, emprego, família. Amigos e amantes era coisa que não tinha. O que tinha era um amor-próprio quase nulo - dizia-se que sofria de «ardor-próprio» - e um sentimento de inferioridade que o levava a passar ainda mais despercebido.

Porquê? - perguntavam-lhe poucos. E Dezassete dos Santos lá respondia com a história do dia em que a professora se esquecera do nome dele («Ó... Dezassete... Dezassete da... Silva? Dezassete... ó miúdo») ou do ano que a mãe, aflita, lhe telefonou às onze e meia da noite de natal a pedir-lhe «desculpa, meu filho, esquecemo-nos de ti...» Ou com a memória daquele episódio em que a reunião no gabinete do chefe foi interrompida por um colega que ficou à conversa com o chefe durante mais de meia-hora, como se ele não estivesse ali - e lembrava a cara assustada com o que o chefe, depois do colega se ir embora, lhe perguntara «então, ainda aí está?» Ou com a azeda lembrança da noite em que a senhora da secretaria tinha pedido a um seu conhecido para lhe entregar uns papéis e o dito conhecido se esquecera para quem eram os tais papéis (embora ainda esboçasse um esgar cada vez que se lembrava da galhofa que o caso tinha provocado lá no escritório).

Era por essas e por outras que Dezassete dos Santos tinha tomado a sua mais importante decisão. E no dia escolhido, dirigiu-se ao balcão e entregou o pedido. O sorriso foi largo quando a senhora lhe disse «'tá tudo em ordem, depois mandamos-lhe o cartãozinho, certo? Próóóximo!» A partir desse dia, nunca mais ninguém se iria esquecer dele, nunca mais iria passar despercebido no emprego, nunca mais! A partir desse dia, Dezassete dos Santos passava a chamar-se Único dos Santos.

Infelizmente, o seu processo tinha ficado perdido, esquecido, para trás. Mas Dezassete dos Santos nunca o soube - ficou sentado nos degraus do seu velho prédio, em frente à caixa do correio, à espera do «cartãozinho». Dizem os poucos conhecidos que se recordam dele que ainda hoje, passados tantos anos e com a reforma atrasada, Dezassete dos Santos continua sentado nos degraus do seu velho prédio, de olhar fixo na caixa do correio e sorriso aberto, à espera... À espera...