Receituário
Estou doente. Não é só a gripe, nem a constipação, nem a garganta inflamada, nem a dor física. Não é só o stress do trabalho, nem a falta de governo, nem a hipocrisia da temporada. Não é só o cabrão do maremoto, nem as imagens na TV. Não é só a merda do telefone que não me deixa sossegado, nem a pôrra do dia que nunca mais acaba. Não é só o colega que devia ter vindo e não veio, nem o trabalho dele que sobra para mim. Não é só o dia que é pequeno para as encomendas, nem os ouvidos que já não ouvem a diferença, nem as mãos que já não conseguem escrever direito. Não é só o «desculpa, hoje não posso, outra vez», nem o «não sei há quanto tempo não tenho um fim-de-semana decente». Não é só o fim-de-semana que nunca mais chega, nem o fim do mês que nunca mais chega, nem o ordenado ao fim do mês que, feitas as contas, não chega. Não... É o estar farto, é o cansaço, é a fatiga. É olhar para o lado e ver sempre o mesmo, sempre na mesma. É ter de encarar o dia seguinte sabendo que vai ser igual ao anterior. É ter de viver a sobreviver. É o «ter de», o «ter que»... É o querer estar doente e não poder.
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