23.10.04

Nitrato de Sólido

Desta vez, o Comandante Sénior Silva sabia bem ao que ia. Já não era a primeira vez que o veterano de tantas guerras e rebeldias dava de caras com episódios desta natureza. A primeira vez - ainda se lembrava como se tivesse sido ontem - foi a mais difícil. Era ainda um jovem júnior, quando um telefonema para a sede o obrigara a correr para o local do vil acto. Lá chegado, o vómito foi mais urgente que a sensação de dever por cumprir.

Hoje não. Hoje, o Comandante é um Sénior graduado e uma chamada urgente já é recebida com a naturalidade de quem tem muitos anos disto e a calma de quem já viu e viveu tudo o que tinha para ver e viver. Afinal, se fizermos bem as contas, coisas destas acontecem todos os dias em todo o lado - é só preciso estar atento e conhecer os sinais.

Quantas vezes já não vimos nós pequenos monstros azulados de orenhas espigadas e sete braços sentados a ler o jornal de antes de ontem no banco do jardim? Quantas vezes não fomos nós ultrapassados na fila do supermercado por uma tartaruga avermelhada de olhos rasgados e cabelos louros a pedir apressadamente «Bzi-can-tro-lip! Bzi-can-tro-lip!»? Quantas vezes não sentimos vontade de dar uma palmadinha nas costas daqueles pobres montículos de nhanha verde com asas partidas, caídos enfermos no passeio junto ao parque? Quantas vezes não chamámos nomes feios aos gigantes de três pernas e oito olhos e quatro bocas e dois cérebros pendurados à cintura, só porque se esqueceram de trazer a salada?

E quantas vezes o Comandante Sénior Silva já não tinha sido chamado para resolver mais um não-crime à porta da Pensão Cléfikyt? Quantas vezes já não tinha visto aquele cenário: uma poça de sangue alaranjado, restos de poeira e seda e a terrível sensação de que aquele bricantífolo se tinha suicidado? Ou não fossem os bricantífolos a maior anedota da criação, suicidários por natureza e tradição, com um gosto matreiro por incriminar o próximo...

O Comandante Sénior Silva sabia bem ao que ia. Levou o seu tempo, entrou no café da esquina, sentou-se ao balcão, pediu a habitual dose de nitrato e o costumeiro dónut à elegante gafanhota rôxa por quem tinha um fraquinho e pensou: «é hoje».