Crónica de Lobo Antunes sobre Zé Maria
Os gatos lá estavam, à janela, um deles ainda constipado com o que fizeste, do dia em que me apercebi que o teu telefone não tocava, eu na casa de Benfica a ver as pessoas passar, a dobrar a esquina, e tu vertiginoso pela calçada abaixo, ao gritos, como se em Agosto alguém ligasse a isso, como se procurasses algo mais do que uma vida simples como tinhamos em África
o teu pai telefonou-me, tem o microondas avariado, o general continua a poder comer sopas, não sei o que te diga
e quarta-feira vou buscar a tua toalha amarela, aquela com que escondias vergonha mas que deitaste fora, quando os bofes já não aguentavam mais, e o sol era uma bola amarela, um peso enorme que estava em pêndulo sobre ti, os teus sentidos a cederem e os gatos em protesto não ronronavam
eu em Benfica, na velha casa, onde o reboco se começava a ver por debaixo desse castanho claro que inventaram nos anos oitenta, tu ainda novo, sem saberes que um dia estarias cá em casa, que eu cuidaria de ti e, em troca, tu me fazias o avançado, tratavas das galinhas no quintal, fechavas a marquise e sem calor, ficávamos ali a bebericar uma torpe tarde de Agosto, igual àquela em que apareceste na clínica,
o coronel com as sopinhas, em África, e tu longe, a carregar o fardo, até que te despiste, até que correste para o rio, até que por um segundo te transformavas no desespero voador, vindo da casa fechada, pior que a PIDE, mil olhos sobre ti, a loira com quarenta anos a cismar que tu namorarias com a loira gorda
o coronel molhava o pão na sopa, em Benfica, a imaginar África nas ruas, os carros eram pacaças e impalas
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