3.6.04

Semi fusa

Se te falo em francês, escuta, se te falo em francês ainda que arrastado, ainda que já velho, ainda que a janela esteja fechada e lá em baixo seja Évora
se te falo em francês é porque acredito que possas ainda entusiasmar-te pela língua, pela ideia de um dia, comigo, pensares em francês,
repara no piano,
cantavas Kurt Weill, rapavas as pernas, eu aqui sentado só tocava com a mão equerda, a dos graves,
repara na foto, tinha seis anos, havia padres e padrinhos e um homem que tinha morto outro e quando isso acontecia era a loucura a causa, o alibi, o mote, não havia crimes, havia culpa, o tio foi a entrerrar e deixou-nos o piano cá em casa
dos grandes,
e tu quando nasceste foste uma alegria, não por mim, que sempre te desejei lascivo, mas esperei, ao contrário do teu outro tio que levou um tiro no meio da cabeça, estávamos todos a jantar, eu tinha seis anos e lembro-me do crâneo a abrir-se como se fosse um espelho a estilhaçar para cima do sarapatel, a tia Inês já desgraçada, viúva aos 27, a tua idade, repara, viúva e sem nada para fazer a não ser lamentar-se e lamentar e então
o piano veio cá para casa e um dia aprendi a tocar ao som do rádio,
tu cantas e eu toco Elvis Costello, Portishead,
claro que não sou louco, mas sempre te desejei, és mais nova, tens umas pernas lindas, tens peito, o teu rabo é redondo e proeminente,
não tens cauda como as outras mulheres e lá por ser teu tio não impede que possa desejar-te mas deixa estar,
o diabo seja surdo, mudo, mas que te veja,
um piano daqueles enormes, aqui na janela, olha