6.5.04

A lituana

Breve escape: em dois dias tinha acumulado mais folhas de papel A4 do que podia imaginar. Agora, às resmas, eram como o muro da velha Berlim, que o impediam de contactar com o mundo em open space que os liberais inventaram. Adejavam por ali colegas, camaradas e amigos, com a curiosidade e súplica nos lábios, mas sem dizer palavra. Os mais audazes perguntavam "Que merda é essa, pá?" e iam-se com medo da resposta, sempre a fingir que tinham vindo buscar um café ou o jornal.
Dengoso e discípulo corrente da preguiça, a cada fax ou envelope com novos dados sobre o caso, soçobrava. Quem dera um pequeno resumo, uma ou duas folhas onde com caneta verde se destacasse o essencial. Serviria até o negrito nas frases mais importantes, como nos discursos políticos, que emprenhados assessores distribuíam com a frase curta e sussurrada "É o que vai dizer fulano. Faz fé a versão lida".
Muitas vezes cismou nesse "faz fé a versão lida". Faz fé? Acreditaremos então dogmaticamente no que se diz e atiremos a palavra escrita para o chão, o empenho de jovens criativos que dias e dias prepararam tão bela verve para agora os excumungarem à porta do sucesso. Se sicrano não ler a frase "e por isso, senhores deputados", quer dizer que não se faz fé nos deputados?
A tralha estava, ainda por cima, desarrumada. No monte da esquerda os testemunhos das vítimas, tirados a ferro a um inspector da judite, depois de seis whiskys, quatro a dois, vencera ele, e outros recebidos à porta de uma igreja em Benfica, periodicamente, dentro de envelopes castanhos, quando batia a uma da madrugada.
O do meio, as várias versões das defesas, as mais belas provas de inocência, textos jurídicos redigidos ao estilo Harlequim.
A da direita, contas, tabelas, números cruzados, listas de telefone. A matemática do processo.
Bateu-lhe uma mão no ombro: "Tens lá fora uma gaja que quer falar contigo."
Quem?
"Não sei, diz que é lituana."

(continua)