17.1.04

O estranho caso do Chico Zé

«Chico Zé! Ó Chico Zé!», gritou uma última vez a Etelvina, a da canção - «a do Godinho, aquele moço que esteve preso no Brasil», lembrava a Etelvina, do alto da autoridade que tal estatuto lhe concedia. Foi a gota de água na aldeia. «Fascista!», gritou o Ti Vicente. «Degenerado», replicou a Dona Maria das Dores. «Parvalhão», desabafou o Manecas. «Segismundo!», gritou a Vó Perpétua pelo seu netinho surdo-mudo, alheia ao estranho caso da rebeldia do seu compadre Chico Zé.

Mas o Chico Zé não respondia. Até o presidente da junta, o respeitável Senhor Presidente, mandou a sua directora-geral e secretária, a Doutora, marcar uma consulta no médico da aldeia (já só deviam faltar 15 dias), suspeitando de um problema agudo de respiração mal distribuída. O João «Zito» do café é que dizia sempre que o Chico Zé não respondia para não incomodar a Etelvina, que passava as manhãs a escrever cartas ao Godinho, para lhe agradecer a canção. Dizia-se na aldeia que a Etelvina até estava a pensar pedir ao Godinho para escrever uma canção para o Chico Zé, para ver se ele respondia.

Mas o Chico Zé não respondia. E os dias foram passando. E os meses, e os anos... E a aldeia foi esquecendo a rebeldia do Chico Zé. O Ti Vicente continuava a jogar dominó com o João «Zito» no café. A Dona Maria das Dores continuva a facer tricô. O Manecas continuava a jogar à bola no pátio da junta de freguesia. O Senhor Presidente continuava a mandar a Doutora fazer-lhe recados na mesa de reuniões. E a Etelvina continuava a escrever cartas ao Godinho. Até ao dia em que se ouviu...

«Segismundo! Ó Segismundo!», gritou a Etelvina, a da canção.