28.11.03

Epitáfio a Moreira Nunes

Aprendiz de causas
A meretriz de todas as ideias
Enleia-te na cama de dossel
Faz-te passar de anarca livre
A Marx de cordel
Bradas como trabalhador
Que afinal nada mais quer dizer

O caso continua

Aos que passam
Não há madrugadas a bradar
E um abril prometido
Está pronto a enterrar
Moderas as palavras
Vais deixando raivas

O caso prossegue

Nas avenidas querias ver
Renascer os tambores de Lavacolhos
As verdadeiras armas de carvão e giz
Nunca abandonas essa ideia
Igualdade
Mas perde-se o ânimo
Morres por dentro
A idade

O caso encerra-se

No epitáfio
Na lápide
Terás o texto final e merecido


Sonhador desejoso por orgasmo social, lutou a vida toda por big bands em todas as esquinas. Um dia, por paixão, atirou-se sobre Alice, pequena e bela, na festa do Hotel Avenida. E bastaram poemas de Natália e Fausto para que em minutos lhe tocasse os seios. Aos 40 parou a cânfora, deixou de fumar, preocupou-se com a saúde e deixou cair Proudhon. Tomava chá em casa de putas regeneradas. Os perfumes da botica chegavam-lhe para impressionar gaiteiras. Tinha a Bíblia e começou a desconfiar que os apóstolos o vigiavam enquanto dormia.

No monte, debaixo das oliveiras, foi ver a varada. Uma, erro drástico, abriu-lhe a cabeça em dois. O lado esquerdo sobreviveu meia hora mais. Partiu em paz, sem nada ter conseguido. Mas aqui está a bonita campa, como pediu.

de Eustáquio Pinho, Linguados em Contramão, entre as Pampas e Buenos Aires, 1977